[Texto ainda em construção. Será apresentado num evento literário em Alcáçovas, na semana que vem.]
De passagem pelo Alentejo, vivi em Évora, nas comemorações da Revolução dos Cravos, uma emoção memorável: shows, fogos de artifício à meia-noite, banda,
a enorme praça lotadíssima e a multidão toda – muita gente portando
cravos vermelhos – entoando "Grândola, vila morena", o hino que o povo cantou na noite
de 24 para 25 de abril de 1974, quando a ditadura de Salazar foi derrubada sem
necessidade de disparar um tiro.
O próprio hino parece um cante alentejano. Depois que o evento
terminou, já após a uma da manhã, muita gente permanecia na praça em animados círculos de conversa e... do meio
daquela gente toda, ergueu-se a voz de um coro entoando cantes, vários, lindos, emocionados. O cante
lembra um certo tipo de música brasileira tradicional que já traz na melodia uma espécie de tristeza que nos deixa
enternecidos... a velha moda de viola, por exemplo, mas entoada em coro, com um
solo puxando a melodia.
Eu trazia, de leituras e de vídeos capturados na internet, uma
ideia vaga do cante e de sua prática como uma tradição alentejana, mas isso estava muito
distante da viva emoção que senti ouvindo os cantes ao vivo e espontaneamente
entoados nessa madrugada na praça do Giraldo. A cada nova toada, mais crescia o número de participantes e mais poderoso
ficava o cante.
Por isso, decidi estender por mais uns dias minha passagem
pelo Alentejo e na tarde do dia 25 vim a Alcáçovas assistir ao Cante da Terra,
oportunidade em que pude ouvir quatro dos grupos tradicionais de Alcáçovas e de Viana do Alentejo. O Cante
da Terra aconteceu ao fim da tarde do 25 de abril no Jardim Público, simultâneo a evento semelhante e paralelo em
Viana. Aqui — e lá, da mesma forma, com os convidados se apresentando por último –, cantaram dois corais tradicionais
de Alcáçovas e dois de Viana.
Infelizmente, como vejo ocorrer no
Brasil e, por notícias, em outros locais do mundo, parece haver uma cisão no cultivo das tradições entre as gerações mais jovens e as veteranas, o que
se refletiu no público que compareceu ao evento: os próprios cantadores e alguns dos mais
velhos do lugar. Mesmo assim, era bastante gente para uma população tão pequena como a desta freguesia do
distrito de Évora.
A tarde era apetecível: sol, brisa tranquila, pássaros alegres (há por ali uma velha palmeira sobre a
qual uma cegonha construiu seu ninho); todos pareciam felizes – afinal era feriado e a temperatura
estava gostosamente amena em relação ao frio pesado que faz no inverno e
ao tórrido
calor do verão alentejano. (Soube hoje que o verde e a pujância dos campos floridos são efêmeros: duram menos de um mês, normalmente, período que vem sendo ampliado após a construção, a 50km daqui, do segundo maior
lago artificial da Europa — a barragem de Alqueva, no rio Guadiana).
Depois de gravar todas as apresentações para estudo futuro das letras e
das melodias – e também para dar veracidade aos tipos humanos do romance que
estou a escrever (e que me trouxe para cá) e cujo personagem central nasce em
Alcáçovas
no ano de 1470 — fui ao Quiosque da Praça, onde alguns rapazes brincavam com
o cante, em versões que pareciam escandalizar a proprietária do lugar.
Um dos puxadores era um trabalhador
do campo que eu já havia encontrado na véspera, numa tasca da freguesia, e
que, por feliz coincidência, chama-se Pedro, como o meu personagem, cuja construção ficou definitivamente contagiada
pelo perfil deste tosquiador de ovelhas do século XXI. As corruptelas que fazia do
cante alentejano (usando como referência, entre outras, o Grândola, vila morena) ou as brincadeiras com textos
infantis ou mais ou menos malcriados da música popular, mais a imitação dos trejeitos próprios do modo de entoar o cante me
fizeram rir e contemplar brevemente a realidade e as potencialidades desse
patrimônio musical do Alentejo) também na sua espontaneidade tão aberta à irreverência, como toda boa tradição da música popular.
Enfim, a impressão geral que me ficou do cante até o momento é dessa combinação deliciosa entre a força de suas raízes tradicionais plantadas na Idade Média e sua conexão profunda com a terra alentejana
viva de hoje, com a vida no campo e na casa e com as mazelas que o país está vivendo, vítima dessa estúpida roleta universal que é o mercado financeiro, e do qual,
como o Brasil anterior ao governo popular iniciado com Lula em 2003, parece não conseguir escapar. Neste sentido, o
cante é revolucionário, é sério, é triste — mas de uma tristeza que beira o bom espírito de liberdade da anarquia como
bandeira do bem-viver coletivo — e musicalmente rico, capaz de abrigar e promover tanto o
gosto pelo canto coletivo quanto servir de campo de expressão para saborosíssimas particularidades vocais e para
a capacidade de improviso dos indivíduos. O cante é, assim, uma forma popular de arte — uma tradição musical que sobreviveu às tentativas de filtragem e
achatamento desde os anos 30-40 da ditadura de Salazar — que, como nos vinte anos da ditadura
brasileira, não queria ouvir os lamentos do povo, porque lhe interessava
mostrar ao próprio país e ao mundo uma realidade pujante e feliz, que, no
entanto, era falsa.
O cante é, enfim, uma expressão do patrimônio cultural em que o povo do Alentejo, ao mesmo tempo, conta cantando suas dificuldades e sofrimentos de todo dia e pede respeitosamente solução, mas não de forma resignada e sim como uma advertência que diz: estamos aqui a viver isto e pedimos ajuda, mas se ela não viver, em algum momento encontraremos nossa própria solução.