segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Primeira visita a Montevidéu.

Pra retardar o esquecimento e criar pretextos para as fotografias, relato sumariamente aqui o que Euson e eu fizemos em Montevidéu no fim de semana 26-27 de setembro, na ordem dos acontecimentos:

  1. Passeio do Hotel Arapey até o Teatro Solís. O teatro abriria apenas às 11h para visitação. Ficamos sabendo que, por ser o Dia del Património, todos os edifícios púbicos históricos estariam recebendo visitantes no sábado e no domingo.
  2. Circuito del Património: trajeto parcial, num ônibus ano 1962 reconstituído, pertencente ao Museo del Transporte, descendo pela Ciudadela e passando pelas ramblas Gran-Bretaña, Francia, 25 de Agosto, Roosevelt e América, até a Torre de Telecomunicações.
  3. Visita externa à Torre de Telecomunicações da Antel (estava fechada por problemas numa grua). Fotos da arquitetura grandiosa, de linhas contemporâneas, que inclui um teatro de arena. A manhã ensolarada ajudava.
  4. Subimos a pé pela Guatemala, até o Palácio Legislativo. A arborização das ruas é bastante pitoresca (acabei não investigando sobre as espécies utilzadas, que são frondosas no verão e não rompem as calçadas).
  5. As escadarias do Parlamento Uruguayo estavam repletas de cabos eleitorais dos partidos que disputam as eleições presidenciais (outubro). Muitas pessoas visitando o palácio. A recepção é calorosa, em todos os lugares. Emociono-me profundamente com a visita às câmaras dos senadores e dos deputados. De duas, uma: parece que havia, outrora, em terras como as do Uruguay, um respeito imenso pela instituição democrática. A arquitetura exuberante e nada sóbria parece querer estabelecer com as pessoas aquela mesma relação que os grandes templos estabeleciam: a convicção absoluta da legitimidade e do poder. (Mas, pensarei melhor nisto depois.)
  6. Ao descer as escadarias do Parlamento, ouço um jovem cabo eleitoral discursar veementemente para uma senhora já idosa: "Não deixaremos que um Chaves tome conta do Uruguay!". Logo abaixo, um casal nos aborda oferecendo um folder da campanha de Mojica e Astori. "É da linha de Tabarés?", pergunto. Ele diz que "Sim, é da Frente Ampla". Digo a ele que meu prefeito é amigo de Tabarés. Ele nos pergunta em que votaremos nas próximas eleições. "Dilma Roussef", digo.
  7. Descemos, depois de muitas fotografias, a Av. Libertador Brigadeiro Lavalleja e nos abrigamos (pra matar a sede) no Las Carmelas. Pedimos "ternera al horno con rusa", grapa e uma patricia (ou foi aqui a Zillertal?). Logo começa a passar uma enorme carreata da Frente Ampla e ficamos sabendo que Mujica e Astori frequentam o Las Carmelas, de cujo proprietário Mujica é amigo. A euforia da carreata nos deixa alegres; uma senhora vem alimentar os pombos - os uruguaios sorriem com grande facilidade.
  8. Mais tarde, depois de um almoço bem tranquilo e um descanso no hotel, vamos ao Solís. Ao nos aproximarmos da Plaza Independencia subindo a calle Flórida, um som inusitado começou a tomar conta do espaço - parecia, de verdade, o ronco do mar agitado ou uma grande trovoada que se aproximasse. Ao desembocarmos na praça, porém, vimos que eram os tambores do candombe: o Carnaval reeditado fora do tempo, no Dia del Património! Embora já estivessen terminando as "llamadadas", ainda pudemos apreciar vários grupos, enquanto descíamos para o Solís.
  9. Inesquecível experiência esta de visitar um teatro num evento tão bem organizado como é, em Montevidéu, o Dia del Património. Cicerones, apresentações pelo sistema de som, música, folders... muita informação boa. Emociona-me o teatro, apesar de afrontar-me sua suntuosidade. A solução tecnológica do proscênio-orquestra é perfeita para utilzarmos no teatro municipal de Joinville. Fotografamos os lustres de 500 quilos. Sentamos na cadeira presidencial. As partes adicionadas ao edifício original deram-lhe uma qualidade estrutural que é digna de nota. Em baixo, do foyer principal, toda uma estrutura de apoio moderna e bonita.
  10. O que deveria ser o chá - mas foi cerveja - fomos tomar no Bacacay, o café localizado diante do teatro. Nas escadarias do Solís, a batucada dos candombes continuava, estimulante. Conversamos com Regina Rebmann, a simpática proprietária do Bacacay. (O nome do bar nasceu de um equívoco referente a uma certa vaca debilitada que apareceu certa vez... a vaca que cai!) De novo, ótimo atendimento. Boa cerveja e uma grapa deliciosa, cujo nome não guardei e, por isso, serei obrigado a voltar lá! Escrevo: "Café Bacacay / En los destinos de los autobuses / pasa la ciudad. / Yo quiero irme / con ellos / pero me quedo en el / Café Bacacay..."
  11. A Plaza Independencia continuava cheia de gente alegre no final da tarde de sábado. À frente do Palácio Estevez (antiga sede da Presidência da República), toda uma série de manifestações tradicionais do Uruguay - parte importante do patrimônio imaterial no âmbito da cultura rural: modos de vestir, de fazer comidas, de cantar, de dançar. Além do Palácio Salvo, onde começa a Av. 18 de Julho, a multidão passeia. Um grupo hare-krishna passa, misturando-se aos restos de candombes que ainda vagueiam por aqui.
  12. Subindo a 18 de Julho, na Plaza Fabini (do Entrevero), topo com um grupo de casais bem idosos dançando tango na calçada. Parece abrir-se no tempo uma fenda. Gravo umas imagens, mas fico por ali, me deixando ser noutro lugar que parece mais meu do que a lógica me diz que é. Tomo uma cerveja na praça e descubro o Museo del Subte (Centro Municipal de Exposições), galeria subterrânea que fica embaixo da praça Fabini. Fotografo as lágrimas vivas de Catherine Romanelli, que ficaria em exposição até o dia seguinte apenas.
  13. O pôr do sol avermelhado faz pensar que vai ser bom o tempo no domingo, mas já sabemos que não será. Fotografo a luz, que vai passar, enquanto passeio sozinho pelas imediações - ruas Colonia, Mercedes, Convención, Andes, Uruguay... E vou dormir um pouco pra ter boa energia à noite.
  14. Jantamos no La Pasiva (raviolli e um bom vinho), preparando o espírito para ir a um boliche, à noite.
  15. Descobrimos um barzinho saboroso, com mesas na rua e um balcão interno em U. Música: rock e blues injetados com 2 aparelhos de vinil. Bebemos patrícias e algumas doses de rom até que a madrugada se adiantou demais e a gente teve de voltar pro hotel.
  16. No caminho, uma ceia madrugueira no The Manchester, esquina da 18 de Julho com a Rio Branco ou a Convención, não lembro bem. Garçons simpáticos. Tomamos mais uma Pilsen.
  17. O sábado foi pra descansar. Por volta das 10h, saímos - a chuva já se abatendo sobre a cidade, empurra por um vento furioso e frio que arrastava as penugens e sementinhas das árvores. Visitamos uma antiga igreja nas proximidades do Banco Nacional de Uruguay. Depois, quase empurrados pela chuva, subimos novamente para a Plz Independência, onde bebi vinho e almocei (Plaza Bar). Como tivemos a sorte de que nossa viagem coincidisse com o Setiembre Escénico (Festival Internacional de Artes Escénicas del Uruguay), fui ao Solís comprar ingressos para o "H3", uma companhia brasileira de dança contemporânea (Bruno Beltrão). Na volta, descobri o mausoléu subterrâneo de Artigas, na Independência. Fiquei impressionado com a arquitetura e com o poderoso efeito da obra - a letras esculpidas em grande relevo contando alguns passos emblemáticos da vida ao libertador do Uruguay. Fiquei tão impressionado que me esqueci de tirar fotografias. (Depois do almoço retornei com meu companheiro ao Mausoléu.) Um vento poderosíssimo quase nos arrasta, junto com papéis e folhas, pelas ruas afora, à frente do Palácio Presidencial.
  18. À tarde, comprei livros na Papacito: 2 de Mario Benedetti ("La vida ese paréntesis" e "Las soledades de Babel"), "Las lenguas de diamante", de Juana Ibarbourou, "Poesía completa", de Idea Vilarino e "Onetti: la Novela Total - Opera prima/Opera omnia", de Omar Prego Gadea e María Angélica Petit.
  19. Fui, então, dormir um soninho pra poder ir ao teatro, à noite. O Arapey fica num velho edifício aí dos seus 100 anos. É um hotel decadente, como muitos que há por aí tudo. Seus dias de glória estão estampados ainda na estrutura, na decoração, na fachada. O que tem de bom é o silêncio.
  20. Às 20h, fomos ver "H3", de São Paulo, no Teatro Solís. Impressionante: dança contemporânea bebendo no teatro de rua e construíndo uma forma que, ainda que nova, consegue arrebatar a todos. Por isso, os calorosos aplausos no final.
  21. Depois do teatro, jantamos novamente no The Manchester, variando o cardápio. Mas, faltava algo e perguntamos pros garçons sobre uma casa de tangos. Um deles nos indicou uma e nos fómos.
  22. Chegamos ao Las Musas! onde fomos engolidos pelo tango até as 2h da manhã. Conversei com um dos melhores bailarinos presentes e recebi instruções: da próxima vez, devemos começar por Las Musas
  23. Partimos às 4h15min da manhã.
  24. Ufa! valeu a pena!

sábado, 5 de setembro de 2009

Das agendas imponderáveis.

Borges de Garuva(*)

Gostaria de refletir um pouquinho, ao final deste bonito e pertinente filme de Gus van Sant, sobre uma “luta” que tem me preocupado desde os anos 70 e que tem marcado momentos importantes da minha vida e de indivíduos, grupos e sociedades ao meu redor e pelo mundo afora.

Para isso, gostaria de relembrar outras lutas nossas, algumas delas iniciadas há milênios e que, no entanto, ainda seguem tendo de ser defendidas para que não corram o risco de perderem totalmente o significado, como já vimos acontecer a várias delas.

A primeira é a do reconhecimento, pela cultura européia, dos orientais, dos africanos e dos indígenas das Américas como seres humanos, que, por isso mesmo, não podiam ser escravizados. A escravidão era (era?) um dado do senso comum. Escritores do século XVI, como Montaigne e Bartolomé de las Casas deixaram textos curiosos nascidos do esforço de explicar, de definir os negros e os índios como seres humanos – pois mesmo para a Igreja Católica, presumivelmente a instância mais esclarecida da sociedade à época, índios e negros eram animais que, desprovidos de alma e desdotados de inteligência e sensibilidade, podiam ser massacrados como se fazia e com se faz ainda sem o menor escrúpulo na África e no Brasil com os bandos de macacos.

Outra importante agenda da história tem sido a batalha pelo reconhecimento da autonomia da mulher em relação ao macho (pai, irmão, marido, vizinho). A paranóia social da caça às bruxas no início da Idade Moderna pode ser um exemplo interessante de como a sociedade resiste com fúria à possibilidade de que se consolide uma atitude tida como ruptura em relação a um estado consolidado de coisas. Como, então, e a partir de que momento, começou a ser considerada justa a luta da mulher por seu reconhecimento como um ser de direitos dentro da sociedade?

Duas outras agendas aparentemente mais recentes (mas vemos delas exercícios já em sociedades bem antigas – na Grécia e em Roma, por exemplo) são a desvinculação da sexualidade em relação à reprodução e o direito de acesso ao pacto social por parte das camadas mais humildes das populações.

Por fim, lembro a agenda ilustrada pela luta de Harvey Milk – o direito à igualdade sexual para quem experimenta em si mesmo os chamados de uma sexualidade diversa. Em que momento, lá pelos idos de 1960, a indignação de alguns homossexuais começou a ser acatada pelos próprios homossexuais e por outras pessoas até transformar-se em bandeira de luta?

Todos os que estivemos envolvidos com a realização do projeto Diversidade Joinville ou que dele participamos, em algum momento nos deparamos exatamente com as mesmas objeções feitas há 40 anos aos primeiros movimentos pelos direitos homossexuais. Vendo recentemente o filme Stonewall (de Nigel Finch), cuja legenda traduzi para o Ciclo de Cinema de julho, pude constatar que as falas antigays de 1968 – quase as mesmas que aparecem em Milk – são as que correm nas bocas e nas idéias de jornalistas e pessoas comuns da Joinville do século XXI. Mesmo indivíduos relativamente bem informados manifestaram-se ferrenhamente contra a nossa Semana da Diversidade com argumentos parecidos com os de Anita Bryant e John Briggs em Milk.

Porém, as lutas ligadas a alguma destas importantes agendas já encontraram seu termo? Já se cumpriram tais agendas, ao ponto de suas reivindicações terem sido incondicionalmente incorporadas ao pensamento e ao modo de ser dos indivíduos e das sociedades? As falas, as idéias e as atitudes sociais perante a mulher, os negros, os indígenas, o governo popular, a liberdade sexual mudaram muito? A sociedade parece ter-se armado com institutos definidos de repressão às repressões étnicas, sexuais e políticas. Mas, no dia-a-dia, nos confrontos pessoais, nas piadas... as coisas mudaram mesmo?

Na verdade, essas lutas continuam legítimas, pois, minimamente, milimetricamente, vamos avançando em relação a estas importantes agendas sociais.

Como estou preocupado com aquela outra agenda que mencionei no início, gostaria de formular as seguintes questões: como acontece o difícil processo de definição de uma agenda social? A partir de que momento a sociedade passa a reconhecer na reivindicação de alguns indivíduos ou grupos, um projeto importante e necessário para o próprio desenvolvimento humano? Sob que condições se desenha a noção de direito em relação a comportamentos e idéias não corroboradas pelo senso comum?

A agenda ainda imponderável de que falo é a “luta” contra a obrigatoriedade de crer em um deus ou em um complemento metafísico para a vida que experimentamos orgânica e psiquicamente. Um “luta” entre aspas, porque, como tantíssimas outras, ainda não obteve legitimidade como luta em praticamente nenhum lugar do planeta, a não ser quando embutida numa agenda maior.

A imponderabilidade desta bandeira nasce do fato de que os próprios descrentes, por questão de "correção política", evitam explicitar sua posição perante a coletividade e consideram mesmo que a defesa do ateísmo, do não-teísmo ou do pós-teísmo - como se queira chamar - não deve, em respeito aos que creem, sequer ser levantada . Mas, os que creem são a grande maioria da população da Terra (algo em torno de 5 bilhões), enquanto os não-crentes formam uma minoria dispersa pelo planeta (cerca de 500 milhões).O problema é que, assim como os crentes se organizam para dar expressão à sua crença, os não crentes precisam também ter o direito de dizer "Não creio" e de ser respeitados nos lugares públicos e poupados de sermões proselitistas e acusações preconceituosas.

Esta é uma luta – isto é, uma agenda social – da qual depende a redução de um montante incalculável de sofrimento humano, de perseguições, de genocídios, mesmo. Uma agenda paralela à grande luta pelo reconhecimento da diversidade, que há séculos tem sido responsável por uma parcela considerável do nosso processo de humanização.

Esta luta pelo direito de não crer enfrenta, conforme recente pesquisa feita nos Estados Unidos e reproduzida no Brasil, 17% de rejeição da sociedade – quase o dobro da rejeição que os homossexuais experimentam. É que, mesmo entre os que lutam pela diversidade sexual, existe um batalhão que nega o direito à liberdade de não crer.

A agenda da diversidade, portanto, no meu entender, deveria encampar a agenda da liberdade de descrença – que é uma outra diversidade.

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(*) Fala proferida ao final da apresentação de Milk no encerramento da XVI Semana de História da Univille, cujo tema, Sobre a diferença, apontava para a Semana Diversidade Joinville, realizada pela primeira vez na cidade em 02009, 40 anos após Stonewall.

Sam Harris Religous Intolerance