quinta-feira, 28 de março de 2013

Um poema.

Finisterra

(Borges de Garuva, 2013)


Enfim,
aqui estou
no limiar do sentido,
face a face com a infinitude.

Vasto oceano de silêncio
se estende à minha frente,
lisa superfície contínua e sem horizontes.
Arrio as velas do meu barco.
Deixo-o deslizar mansinho
ao sabor do impulso da viagem
até que fiquem para trás
a última estrela,
a última frágil memória,
a última palavra...

Estou aqui e vejo.
Vejo com gratidão como chegou ao termo
a minha longa jornada.
Percebo, alegremente resignado, os meus limites:
sei que não posso aventurar-me além;
basta-me saber que faço parte da eternidade.

Penetro devagar a infinita e cintilante noite.
Banha-me a absoluta harmonia
de um acorde perene e inebriante
– baixo profundo sobre o qual repousam
trêmulas e delicadas cordas –
eco sutil da música longínqua das esferas.

Não tenho medo.
É meu porto seguro esta última praia do real.
Se me aventuro agora ao largo é porque sei
que em breve tornarei a pôr os pés
no solo confortável do meu ser.

Gozo esta ventura de ir derivando assim,
sem medo, o peito aberto,
os braços como asas flutuando nesta paz,
o olhar cheio de luz,
singrando este oceano de indizível beleza.

Transbordo de amor e gratidão:
alguns de meus iguais aqui também chegaram
e luminosos contemplam o limiar da plenitude.
Estamos seguros, sereníssimos,
neste remoto rincão do continente da vida
de onde podemos provar o gosto do silêncio absoluto,
da absoluta ausência de sentido.

Ah, mar Oceano!
Noite profunda em que mergulha meu ser.
Bruma obscura em que se calam todas as perguntas.
Fulgurante escuridão em que se dissipa toda angústia.

Em breve, voltaremos.
Outros de nós já regressaram e dançam,
reencantados com a vida.
Dançam embriagados pela alegria generosa
de haver estado aqui,
nos últimos limites do espaço e do tempo,
alcançado a última fronteira da cultura,
de onde cada qual pode a seu modo vislumbrar de leve
o Todo, o Deus, o Nada.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Uma crônica do meu baú

A formiguinha

Borges de Garuva

É a percepção da morte que nos vai tornando absolutos. Cada dia que passa é um passo a mais para a plenitude, se por plenitude considerarmos a dispersão final, no Reino Anárquico da Natureza, disto que agora somos. Por isso, exijo ser cremado quando se desfizer a aparente unidade que sou. Imagino-me zarpando para o firmamento convertido em partículas de fumaça, e depois espargido pelas chuvas sobre os campos agrícolas e sobre as últimas florestas, ou levado pelo vento para os jardins e os rios, para o mar e as montanhas da minha terra. Por outro lado, já que é tudo tão inexorável - é fundamental que cultivemos em nós uma ampla dose de paciência para com os frágeis componentes do organismo que somos. Cada um deles - cabeça, tronco, membros e suas partes constituintes - é também um coisa viva que se deteriora, ameaçada de súbita extinção, sensível como uma pluma no vento do tempo, transitória como o orgasmo cuja essência é precisamente se perder.

Talvez nem fosse inteiramente próprio, mas era sobre isto que conversávamos, sentados a uma das mesas da Confeitaria Colonial, junto às breves cortinas de rendas claras movidas agora pela brisa da manhã, um diante do outro - ele, meu amigo, e eu, seu idem.

Ele é um moço bonito, saudável, de olhar inquieto e riso franco. Podia ser meu filho, mas tive a sorte de não me tornar seu pai, embora me preocupe seu destino. Poderia ser meu aluno, mas já passou da fase escolar, embora se dirija a mim como se eu fosse professor.

Enquanto rolava nosso papo, e brincávamos nesse bom jogo de vida que é sentar-nos com alguém para comer e conversar, observei no terreno vermelho da toalha, ultrapassando a cantoneira bordada próxima do cotovelo direito de meu camarada, um serzinho móvel que se dirigia em linha reta para o centro da mesa.

Tratava-se, pelas evidências, de uma minúscula formiga-açucareira, voraz devoradora de doces. Passeava sozinha, talvez porque fosse domingo em Joinville: quem se postasse no terraço do Deville veria nossa bela cidade bordada de jardins, exalando saúde na paz das ruas ao longo das quais uns raros transeuntes solitários - minúsculos, vistos aqui de cima - perambulavam com esse prazer peculiar que sentimos quando caminhamos ao léu nas manhãs dos feriados. Fora assim, vagabundeando tranqüilos, que acabáramos na confeitaria.

Seguia a formiguinha pelas ondulações do linho, ora avançando, ora retrocedendo, voltando-se para cá ou para lá, sempre agitando no ar as duas anteninhas quase invisíveis, cujos movimentos lembravam os gestos que os cegos recentes fazem com os braços ou a bengala - tenteios no espaço à cata de vestígios que lhes indiquem as rotas. Para a formiguinha, um cheiro, de certo. Aonde ia dar sua pesquisa?

- O açucareiro? - murmurei.

O açucareiro estava perto de meu cotovelo esquerdo, precisamente na diagonal que o pequeno himenóptero vinha percorrendo.

A gente ficou ali, à espreita do que viria a acontecer, enquanto sobre a mesa jaziam as apetitosas iguarias - leite, café, pães, musses, manteiga, queijo, presunto, salames, cuca, bolo, torta de requeijão, além de nossas duas xícaras de café com leite, antes fumegantes e agora duas superfícies imóveis recobertas pela nata que tivera tempo de vir depositar-se à tona.

De repente e sem explicação, a formiguinha mudou de rumo. Não levantou uma bandeirinha, não apitou, não deu sinal nem nada. Apenas dirigiu-se para o prato de requeijão e por ali mesmo começou o trabalho de minerar seus néctares. E assim, abandonando o artrópode às suas escavações, a gente retomou o fio do nosso assunto, voltando, como se diz, à vaca fria.

Meu amigo estava naquele estágio da vida em que, conforme lhes seja propício, os adultos nos consideram crianças quando já queremos ser adultos, e adultos quando ainda sonhamos ser crianças. Dos conflitos que nascem neste território sem definições da primeira juventude, o mais terrível é aquele que nos põe diante da necessidade de adotarmos ou rejeitarmos para sempre os modelos explicatórios do universo e da vida que a educação simplorizante (familiar, eclesial, escolar) enterra no nosso crânio.

A comodidade depende disto: de adotarmos, voluntariamente ou por imposição, um sistema de referência e conduzirmos nossa vida segundo suas definições. Mas, a felicidade não tem precisamente a ver com a comodidade. Quando questionamos os modelos recebidos do passado, quando assumimos a rebeldia como um modo mais saudável de existir - negando a inexorabilidade do fim -, quando cada atitude começa a exigir de nós alguma reflexão, então nossa consciência passa a conhecer uma espécie de angústia. Esta angústia não é destrutiva: antes, é o alimento da poesia. De resolvê-la incansavelmente, todos os dias, é que nasce o sentido de viver.

Ele pigarreou. Parecia querer perguntar-me algo importante. Segurou a faca com a lâmina ao contrário, e com o cabo de madeira foi tecendo cabisbaixo um arabesco invisível em torno de seu pires.

De repente interrompeu o desenho, elevou para mim apenas os grandes olhos luminosos e assim deteve-se um instante, como se houvesse congelado.

- Afinal – me perguntou – tu achas que a vida tem sentido?

E amassou inadvertidamente com o cabo da faca a formiguinha.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Um conto meu, novinho em folha.

O cara que perdeu as asas

(Borges de Garuva)

Soube de um cara que, um dia, ao despertar, constatou que duas pequenas asas lhe haviam nascido sobre as omoplatas. Pior: em poucos minutos, notou também que elas cresciam a olhos vistos.

Irritado e incapaz de aparecer assim perante os chefes e os colegas de trabalho, decidiu procurar imediatamente uma solução, e se pôs, desesperado, a vasculhar na internet alguma substância própria para remoção de asas.

Reunindo depois os ingredientes requeridos, produziu uma pomada que, diligente e trabalhosamente, passou a aplicar várias vezes ao dia sobre os pedúnculos dos indesejados apêndices.

Certa manhã, constatando que as asas haviam caído, embrulhou-as num grande saco plástico, que despachou na coleta matinal do lixo urbano.

Então, lhe ocorreu que, nem por um único segundo, se dera ao trabalho de experimentar se as asas lhe poderiam ser úteis para voar! E, contemplando no céu azul a revoada tranquila dos urubus, pôs-se desconsolado a chorar, sentindo-se irremediavelmente mutilado.