Borges de Garuva(*)
Gostaria de refletir um pouquinho, ao final deste bonito e pertinente filme de Gus van Sant, sobre uma “luta” que tem me preocupado desde os anos 70 e que tem marcado momentos importantes da minha vida e de indivíduos, grupos e sociedades ao meu redor e pelo mundo afora.
Para isso, gostaria de relembrar outras lutas nossas, algumas delas iniciadas há milênios e que, no entanto, ainda seguem tendo de ser defendidas para que não corram o risco de perderem totalmente o significado, como já vimos acontecer a várias delas.
A primeira é a do reconhecimento, pela cultura européia, dos orientais, dos africanos e dos indígenas das Américas como seres humanos, que, por isso mesmo, não podiam ser escravizados. A escravidão era (era?) um dado do senso comum. Escritores do século XVI, como Montaigne e Bartolomé de las Casas deixaram textos curiosos nascidos do esforço de explicar, de definir os negros e os índios como seres
humanos – pois mesmo para a Igreja Católica, presumivelmente a instância mais esclarecida da sociedade à época, índios e negros eram animais que, desprovidos de alma e desdotados de inteligência e sensibilidade, podiam ser massacrados como se fazia e com se faz ainda sem o menor escrúpulo na África e no Brasil com os bandos de macacos.
Outra importante agenda da história tem sido a batalha pelo reconhecimento da autonomia da mulher em relação ao macho (pai, irmão, marido, vizinho). A paranóia social da caça às bruxas no início da Idade Moderna pode ser um exemplo interessante de como a sociedade resiste com fúria à possibilidade de que se consolide uma atitude tida como ruptura em relação a um estado consolidado de coisas. Como, então, e a partir de que momento, começou a ser considerada justa a luta da mulher por seu reconhecimento como um ser de direitos dentro da sociedade?
Duas outras agendas aparentemente mais recentes (mas vemos delas exercícios já em sociedades bem antigas – na Grécia e em Roma, por exemplo) são a desvinculação da sexualidade em relação à reprodução e o direito de acesso ao pacto social por parte das camadas mais humildes das populações.
Por fim, lembro a agenda ilustrada pela luta de Harvey Milk – o direito à igualdade sexual para quem experimenta em si mesmo os chamados de uma sexualidade diversa. Em que momento, lá pelos idos de 1960, a indignação de alguns homossexuais começou a ser acatada pelos próprios homossexuais e por outras pessoas até transformar-se em bandeira de luta?
Todos os que estivemos envolvidos com a realização do projeto Diversidade Joinville ou que dele participamos, em algum momento nos deparamos exatamente com as mesmas objeções feitas há 40 anos aos primeiros movimentos pelos direitos homossexuais. Vendo recentemente o filme Stonewall (de Nigel Finch), cuja legenda traduzi para o Ciclo de Cinema de julho, pude constatar que as falas antigays de 1968 – quase as mesmas que aparecem em Milk – são as que correm nas bocas e nas idéias de jornalistas e pessoas comuns da Joinville do século XXI. Mesmo indivíduos relativamente bem informados manifestaram-se ferrenhamente contra a nossa Semana da Diversidade com argumentos parecidos com os de Anita Bryant e John Briggs em Milk.
Porém, as lutas ligadas a alguma destas importantes agendas já encontraram seu termo? Já se cumpriram tais agendas, ao ponto de suas reivindicações terem sido incondicionalmente incorporadas ao pensamento e ao modo de ser dos indivíduos e das sociedades? As falas, as idéias e as atitudes sociais perante a mulher, os negros, os indígenas, o governo popular, a liberdade sexual mudaram muito? A sociedade parece ter-se armado com institutos definidos de repressão às repressões étnicas, sexuais e políticas. Mas, no dia-a-dia, nos confrontos pessoais, nas piadas... as coisas mudaram mesmo?
Na verdade, essas lutas continuam legítimas, pois, minimamente, milimetricamente, vamos avançando em relação a estas importantes agendas sociais.
Como estou preocupado com aquela outra agenda que mencionei no início, gostaria de formular as seguintes questões: como acontece o difícil processo de definição de uma agenda social? A partir de que momento a sociedade passa a reconhecer na reivindicação de alguns indivíduos ou grupos, um projeto importante e necessário para o próprio desenvolvimento humano? Sob que condições se desenha a noção de direito em relação a comportamentos e idéias não corroboradas pelo senso comum?
A agenda ainda imponderável de que falo é a “luta” contra a obrigatoriedade de crer em um deus ou em um complemento metafísico para a vida que experimentamos orgânica e psiquicamente. Um “luta” entre aspas, porque, como tantíssimas outras, ainda não obteve legitimidade como luta em praticamente nenhum lugar do planeta, a não ser quando embutida numa agenda maior.
A imponderabilidade desta bandeira nasce do fato de que os próprios descrentes, por questão de "correção política", evitam explicitar sua posição perante a coletividade e consideram mesmo que a defesa do ateísmo, do não-teísmo ou do pós-teísmo - como se queira chamar - não deve, em respeito aos que creem, sequer ser levantada . Mas, os que creem são a grande maioria da população da Terra (algo em torno de 5 bilhões),
enquanto os não-crentes formam uma minoria dispersa pelo planeta (cerca de 500 milhões).O problema é que, assim como os crentes se organizam para dar expressão à sua crença, os não crentes precisam também ter o direito de dizer "Não creio" e de ser respeitados nos lugares públicos e poupados de sermões proselitistas e acusações preconceituosas.
Esta é uma luta – isto é, uma agenda social – da qual depende a redução de um montante incalculável de sofrimento humano, de perseguições, de genocídios, mesmo. Uma agenda paralela à grande luta pelo reconhecimento da diversidade, que há séculos tem sido responsável por uma parcela considerável do nosso processo de humanização.
Esta luta pelo direito de não crer enfrenta, conforme recente pesquisa feita nos Estados Unidos e reproduzida no Brasil, 17% de rejeição da sociedade – quase o dobro da rejeição que os homossexuais experimentam. É que, mesmo entre os que lutam pela diversidade sexual, existe um batalhão que nega o direito à liberdade de não crer.
A agenda da diversidade, portanto, no meu entender, deveria encampar a agenda da liberdade de descrença – que é uma outra diversidade.
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(*) Fala proferida ao final da apresentação de Milk no encerramento da XVI Semana de História da Univille, cujo tema, Sobre a diferença, apontava para a Semana Diversidade Joinville, realizada pela primeira vez na cidade em 02009, 40 anos após Stonewall.