Ocorreu-me ontem, nas conversas de botequim, uma lembrança que vem a calhar.
Em todas as copas, de 1978 a 2002, fui um "anticopeiro" impertinente. Considerava alienante a unanimidade em torno do evento. Com raras exceções nos tempos de Colégio Bom Jesus (em que meus alunos me arrastavam para a festa), durante os jogos do Brasil eu saía caminhando no silêncio das ruas em vez de assistir às partidas pela televisão como praticamente TODOS faziam. As ruas ficavam lindamente desertas. A cidade mudava de cara. Do interior das casas vinham os ruídos da torcida: pelos sons, eu quase via a bola brasileira chegando ou se afastando do gol. Ouvi muito "Filho-da-puta!" gritado coletivamente por trás das janelas enfeitadas de verde amarelo. Eu me sentia sozinho como aquele Charlton Heston das sequências iniciais de "A última esperança de Terra" (1971), mas era bom.
A indignação começou mesmo na Copa de 1978 (quando o goleiro Quiroga do Peru, deixou passar 6 gols argentinos para eliminar da final o Brasil, que acabou como "campeão moral"). Em 1977, o insano general Ernesto Geisel havia lançado o seu Pacote de Abril para assegurar a manutenção da maioria no governo (esse tipo de coisa era própria não só da ditadura, como do governo neoliberal "democrático" de Fernando Henrique Cardoso, que promoveu alterações na Constituição a fim de assegurar um segundo mandato). O país estava realmente uma merda. O desemprego era grande e a rotatividade, maior ainda: os empresários festejavam, porque podiam renovar seus quadros de funcionários pagando cada vez menos pros trabalhadores (eu estava na Fundição Tupy e via isto acontecer). Abandonadas à própria sorte, as famílias agricultoras vendiam a preço de banana as suas terras para os grandes fazendeiros e vinham penar na cidade. Eu via isso. Convivi com isso. Em meio a isso, nós, que éramos contra a ditadura, queríamos discutir política... e o povo queria futebol!
Os anos passaram, conseguimos derrubar a ditadura (por sua própria incompetência e por nosso desejo de democracia) e o futebol permaneceu como objeto generalizado de culto pela maior parte dos brasileiros. Desde 1958, o sonho nacional de uma copa no Brasil (reafirmado por incontáveis pessoas ao longo dos meus últimos 50 anos) está prestes a realizar-se.
Compreendo a irritação contra a Copa da parte daqueles que querem continuar discutindo a realidade brasileira porque a querem melhor. Entendo que os movimentos sociais e os movimentos de esquerda manifestem sua indignação diante dos grandes investimentos no setor. Mas, é preciso recorrer aos dados, é preciso entender que turismo e lazer fazem parte do conjunto de campos de que um país precisa dar conta – o primeiro, porque assegura a circulação e a entrada de divisas; o segundo, porque promove o bem-estar e a saúde, reduzindo os custos do SUS. Além disso, os investimentos na Copa compreendem também investimentos na infra-estrutura (comunicação, estradas, portos, aeroportos), na circulação de bens, na formação de recursos humanos, na geração de empregos etc.
Entretanto, é preciso que as manifestações de esquerda não se confundam com as de direita. Atualmente, o movimento maior anti-copa não é de esquerda; é de direita. São as falanges neoliberais querendo retomar o poder que perderam em 2003. Para isso, precisam a qualquer custo e irresponsavelmente, desmoralizar o governo atual e impedir que a Copa ocorra competentemente, de modo a obterem nas eleições o voto da população frustrada. Mas, com isso, emporcalham impiedosamente a imagem do Brasil no mundo. Arrotam agora, contra o governo popular, o que deviam ter arrotado contra seus próprios governos incompetentes, na ditadura e depois. O Brasil e os brasileiros, entretanto, são muito melhores do que os neoliberais pensam.
O fato de que a gestão desse evento funcione segundo um modelo que essas próprias falanges querem adotar para o Brasil não neutraliza sua utilidade para nós. Não está em poder do Brasil consertar a FIFA e libertá-la de sua ganância, de suas deformações políticas ou racistas e de suas conexões mafiosas. Mas, o Brasil pode, sim, aproveitar esse evento para consertar um pouquinho a sua história presente. É isto, felizmente, que o governo – apesar de sua timidez e de seus senões – está fazendo: tornar a Copa um evento importante não para a FIFA, mas para o Brasil.