quarta-feira, 13 de março de 2013

Uma crônica do meu baú

A formiguinha

Borges de Garuva

É a percepção da morte que nos vai tornando absolutos. Cada dia que passa é um passo a mais para a plenitude, se por plenitude considerarmos a dispersão final, no Reino Anárquico da Natureza, disto que agora somos. Por isso, exijo ser cremado quando se desfizer a aparente unidade que sou. Imagino-me zarpando para o firmamento convertido em partículas de fumaça, e depois espargido pelas chuvas sobre os campos agrícolas e sobre as últimas florestas, ou levado pelo vento para os jardins e os rios, para o mar e as montanhas da minha terra. Por outro lado, já que é tudo tão inexorável - é fundamental que cultivemos em nós uma ampla dose de paciência para com os frágeis componentes do organismo que somos. Cada um deles - cabeça, tronco, membros e suas partes constituintes - é também um coisa viva que se deteriora, ameaçada de súbita extinção, sensível como uma pluma no vento do tempo, transitória como o orgasmo cuja essência é precisamente se perder.

Talvez nem fosse inteiramente próprio, mas era sobre isto que conversávamos, sentados a uma das mesas da Confeitaria Colonial, junto às breves cortinas de rendas claras movidas agora pela brisa da manhã, um diante do outro - ele, meu amigo, e eu, seu idem.

Ele é um moço bonito, saudável, de olhar inquieto e riso franco. Podia ser meu filho, mas tive a sorte de não me tornar seu pai, embora me preocupe seu destino. Poderia ser meu aluno, mas já passou da fase escolar, embora se dirija a mim como se eu fosse professor.

Enquanto rolava nosso papo, e brincávamos nesse bom jogo de vida que é sentar-nos com alguém para comer e conversar, observei no terreno vermelho da toalha, ultrapassando a cantoneira bordada próxima do cotovelo direito de meu camarada, um serzinho móvel que se dirigia em linha reta para o centro da mesa.

Tratava-se, pelas evidências, de uma minúscula formiga-açucareira, voraz devoradora de doces. Passeava sozinha, talvez porque fosse domingo em Joinville: quem se postasse no terraço do Deville veria nossa bela cidade bordada de jardins, exalando saúde na paz das ruas ao longo das quais uns raros transeuntes solitários - minúsculos, vistos aqui de cima - perambulavam com esse prazer peculiar que sentimos quando caminhamos ao léu nas manhãs dos feriados. Fora assim, vagabundeando tranqüilos, que acabáramos na confeitaria.

Seguia a formiguinha pelas ondulações do linho, ora avançando, ora retrocedendo, voltando-se para cá ou para lá, sempre agitando no ar as duas anteninhas quase invisíveis, cujos movimentos lembravam os gestos que os cegos recentes fazem com os braços ou a bengala - tenteios no espaço à cata de vestígios que lhes indiquem as rotas. Para a formiguinha, um cheiro, de certo. Aonde ia dar sua pesquisa?

- O açucareiro? - murmurei.

O açucareiro estava perto de meu cotovelo esquerdo, precisamente na diagonal que o pequeno himenóptero vinha percorrendo.

A gente ficou ali, à espreita do que viria a acontecer, enquanto sobre a mesa jaziam as apetitosas iguarias - leite, café, pães, musses, manteiga, queijo, presunto, salames, cuca, bolo, torta de requeijão, além de nossas duas xícaras de café com leite, antes fumegantes e agora duas superfícies imóveis recobertas pela nata que tivera tempo de vir depositar-se à tona.

De repente e sem explicação, a formiguinha mudou de rumo. Não levantou uma bandeirinha, não apitou, não deu sinal nem nada. Apenas dirigiu-se para o prato de requeijão e por ali mesmo começou o trabalho de minerar seus néctares. E assim, abandonando o artrópode às suas escavações, a gente retomou o fio do nosso assunto, voltando, como se diz, à vaca fria.

Meu amigo estava naquele estágio da vida em que, conforme lhes seja propício, os adultos nos consideram crianças quando já queremos ser adultos, e adultos quando ainda sonhamos ser crianças. Dos conflitos que nascem neste território sem definições da primeira juventude, o mais terrível é aquele que nos põe diante da necessidade de adotarmos ou rejeitarmos para sempre os modelos explicatórios do universo e da vida que a educação simplorizante (familiar, eclesial, escolar) enterra no nosso crânio.

A comodidade depende disto: de adotarmos, voluntariamente ou por imposição, um sistema de referência e conduzirmos nossa vida segundo suas definições. Mas, a felicidade não tem precisamente a ver com a comodidade. Quando questionamos os modelos recebidos do passado, quando assumimos a rebeldia como um modo mais saudável de existir - negando a inexorabilidade do fim -, quando cada atitude começa a exigir de nós alguma reflexão, então nossa consciência passa a conhecer uma espécie de angústia. Esta angústia não é destrutiva: antes, é o alimento da poesia. De resolvê-la incansavelmente, todos os dias, é que nasce o sentido de viver.

Ele pigarreou. Parecia querer perguntar-me algo importante. Segurou a faca com a lâmina ao contrário, e com o cabo de madeira foi tecendo cabisbaixo um arabesco invisível em torno de seu pires.

De repente interrompeu o desenho, elevou para mim apenas os grandes olhos luminosos e assim deteve-se um instante, como se houvesse congelado.

- Afinal – me perguntou – tu achas que a vida tem sentido?

E amassou inadvertidamente com o cabo da faca a formiguinha.

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