Começou ontem (17/07/2008, 20h), a Mostra de Dança Contemporânea do XXVI Festival de Dança de Joinville. O público mediano que o Teatro Juarez Machado recebeu deixa evidente que isto que o festival joinvilense define como "dança contemporânea" não atrai muita gente. Sobretudo, não atrai a maior parte de bailarinos e bailarinas presentes no evento. (Estes são apaixonados por coisas mais nitidamente recortadas: clássico, jazz, folclore, sapateado, dança de rua. Ponto final.)
Agora, dança contemporânea - o que é isto? Arrisco aqui uma opinião que, embora não seja de um estudioso da dança, também não nasce de puro e simples achismo, mas de toda uma experiência como espectador que gosta de pensar sobre o que vê na cena e das minhas leituras e conversas sobre esta maravilhosa e inesgotável manifestação artística e cultural.
Podemos entender dança contemporânea1 como:
- um conjunto de novas técnicas que, aos poucos, vêm também se consolidando em torno de linhas (Cuningham, Graham, Limón-Hamphey-Weidman, Laban, Alexander) que combinam elementos tais como alinhamento, centramento, contração, equilíbrio/desequilíbrio, conflito/emoção, gravidade, liberação, queda, recuperação, tensão/relaxamento, respiração, suspensão etc. - cada termo destes com suas variantes em conceito e tradução;
- o conjunto das obras criadas na atualidade com base na combinação das diferentes atitudes do nosso tempo em relação à expressão estética com o patrimônio acumulado dos vocabulários da dança - tanto dos novos, nascidos da aplicação das ditas técnicas contemporâneas, quanto do clássico, que, por oposição a esses "novos", imaginamos congelado no tempo, mas não: trata-se apenas, na minha visão de leigo, de uma espécie de "reserva de mercado" do meio profissional do balé tradicional, que pretende entender que o acervo de passos, posições e soluçõs coreográficas da dança clássica não podem mais sofrer transformações e nem devem variar jamais.
Qualquer que seja o viés por onde se queira enquadrar a dança contemporânea, sempre surgirão dificuldades para classificar (e/ou qualificar) os espetáculos criados no tempo presente - o que, me parece, é problema dos especialistas. Para nós, o público, os fruidores de dança em geral, a questão está na atitude com que nos colocamos diante do espetáculo, pois dessa atitude depende o maior ou menor proveito que poderemos ter da obra.
Hoje, vimos Luís Arrieta, que abriu a Mostra com seu Carnaval dos animais (música de Saint-Saëns). Depois, o Riscas mostrou o seu Escape. Bonitos ambos. Gosto mais do que propõe Arrieta, porque o trabalho do Riscas ainda está, do meu ponto de vista, em construção: tem coisa ali acontecendo apenas para dar tempo à duração da música, isto é: a coreografia, em alguns momentos, é apenas um esboço.
Mas, mesmo Arrieta, aqui, está colocado como que para legitimar a tendência redutiva em relação à contemporaneidade da dança que sinto no festival de Joinville (evidente já no fato de colocar, na mostra competitiva, a modalidade de dança contemporânea nas mesmas noites da dança de rua, quando se sabe que os públicos atraídos por estas formas são quase total e absolutamente diversos). Por que a mostra de dança contemporânea não pode abrir com um grande bailado contemporâneo do nível de O Grande Circo Místico2? Por que, enquanto o festival abre com um bailado completo do repertório clássico (O lago dos cisnes, do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro) e tem ainda uma noite de gala com outro ballet completo do nosso Bolshoi (Dom Quixote), a mostra contemporânea tem de abrir com um solo e um espetáculo que requerem uma leitura de público mais habitué? Por que isto é próprio do contemporâneo? Não: é porque a organização parte de um pressuposto nascido do senso comum de que "o público não gosta de contemporâneo, então não vale a pena investir muito no contemporâneo".
Seremos, nesta mostra paralela, um público privilegiado? O contemporâneo está aberto a todos os conceitos e tende a tocar mais profundamente os espectadores abertos para os horrores e as maravilhas de sua própria época (estes turbulentos inícios do século XXI) - o que não quer dizer que deva justificar a posta em cena de laboratórios, exercícios preparatórios ou pirações terapêuticas particulares.
Penso que, em termos de dança, a atitude do espectador deva ser semelhante àquela com que encaramos a música contemporânea: embora sempre aberta à experimentação e à exploração de novas possibilidades, é preciso que a música seja música, isto é, que seja construída por meio da linguagem da música - não aquela das clássicas cadências V-I, IV-I etc., mas, através de novas soluções sonoras e novas resoluções harmônicas que dêem origem a um discurso musical intencional, coerente com uma gramática legível para o ouvinte ou o espectador.
Um dia, talvez, por insistência de coreógrafos e bailarinos que sonham com a possibilidade de combinar na cena os diversos idiomas que a dança explorou e construiu ao longo de sua história (articulados inclusive com os dialetos locais, como já estamos vendo acontecer no Bolshoi de Joinville), a Mostra de Dança Contemporânea do maior festival de dança do mundo ganhe o status que toda arte contemporânea merece: ela é criação de gente viva voltada para a sensibilidade do nosso tempo. ___________________________
(1) O respeito que tenho pela história não me permite admitir a designação impensada de "pós-contemporâneo", como há quem queira chamar as formas ainda mais recentes da dança. Pós-contemporâneo é uma idéia absurda e irresponsável.
(2) A remontagem de O Grande Circo Místico, do Ballet Guaíra, com coreografia de Luis Arrieta, apresentou-se em Joinville no festival de 2003.
Um comentário:
A-D-O-R-E-I, concordo plenamente!! acho digno a dança contemporanea ser reconhecida e apreciada do jeito que tem que ser!!! essas pessoas que tem cabeça fechada pra ballet clássico tem que perceber que contemporâneo nao é dança ''limpa chão''... contemporaneo é até mais bonito do que ballet. Eles tem que aprender que dançar bem não é só chegar no palco, ter uma abertura 360 e dar 10 piruetas seguidas!! vamos começar a abrir a cabeça gente, estamos no século XXI
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